Artigo do médico Antônio Celso K. Ayub afirma que quando o ato é proibido por lei, só há uma solução: a intervenção clandestina. Resultado: alto índice de morte.
O aborto tem sido discutido desde a antigüidade por envolver problemas morais, legais e religiosos. Mas, para a provável surpresa dos leitores, não há controvérsia sobre a defesa da descriminalização do aborto do ponto de vista médico. Quase todas as pessoas que se dedicam ao tema concordam que o aborto deve e precisa ser ato médico, realizado de forma competente e com amparo legal. Toda a controvérsia está restrita aos aspectos morais ou religiosos.
Apesar do consenso médico sobre o tema, alguém poderia lembrar que o Juramento de Hipócrates contém a proibição ao aborto traduzida pelo menos de duas maneiras: Não fornecerei à mulher pessário abortivo (instrumento para provocar o aborto), ou não darei à mulher remédio abortivo.
Mas os estudiosos já afirmaram, diversas vezes, que o juramento foi norteado pelo princípio básico da atividade médica: não aumentar os riscos de vida do paciente. Pela mesma razão, o juramento proibia outras operações como a retirada de cálculos renais, comuns hoje, porque na época causavam a morte de muitas pessoas. Era mais seguro conviver com as pedras do que o risco de tentar retirá-las por meio de uma cirurgia. É claro que os progressos da medicina tornaram anacrônicas essas proibições. E elas foram retiradas do juramento. Menos a proibição do aborto. Por quê?
Na época de Hipócrates, a chance de uma mulher morrer realizando um aborto era maior do que o da gestação e do parto. Hoje, a situação é inversa. Há mais riscos de uma mulher morrer no parto do que abortando. Se o aborto for provocado pela técnica de vácuo-aspiração antes de 12 semanas de gestação, o risco de vida é nove vezes menor do que o enfrentado no parto. O uso de medicamentos associados a essa técnica torna esse risco menor do que alguns tratamentos odontológicos.
A experiência mostra no Brasil que a proibição legal é inócua. As mulheres provocam o aborto. Não importa o que os médicos ou as demais pessoas pensem a respeito. Não há campanha que possa evitá-lo mesmo nos países desenvolvidos, com mulheres bem informadas e com políticas de planejamento familiar eficientes. Quando o aborto é proibido por lei, só há uma solução: a intervenção clandestina. Resultado: alto índice de mortes.
Do ponto de vista médico, o aborto implica uma decisão muito simples: ou deixar que as mulheres morram (ou fiquem com seqüelas graves) em abortos clandestinos, ou permitir que interrompam sua gravidez em segurança, atendidas por profissionais competentes.
Alguns argumentam que a proibição deve existir por uma questão ética. Mas desde o tempo de Hipócrates, os pensadores são favoráveis à descriminalização do aborto. Na Idade Média, a maioria dos filósofos, incluindo os da Igreja Católica Romana, estavam de acordo. Somente no século passado, na Inglaterra (1803), e depois nos Estados Unidos (1828) surgiram as legislações restritivas. O próprio Vaticano só decretou a condenação do aborto pela excomunhão em 1869.
Antes de entrar na discussão ética, é preciso distinguir ética e moral. Moral é o conjunto de normas que norteiam a conduta individual. Quando respeitadas, permitem que o indivíduo durma em paz com sua consciência. É absolutamente individual. Ética é o conjunto de regras que regula as relações entre diversas morais conflitantes, dentro de uma sociedade pluralista. É, portanto, extremamente flexível. Qualquer restrição só poderá se relacionar com a moral individual. E cada um tem direito à sua. O inaceitável é que os que não aceitam o aborto, por suas convicções morais ou religiosas, determinem que os que aceitam não possam ter acesso a condições de higiene e ao procedimento médico adequado.
O maior preço da atual proibição legal do aborto é a quantidade de mortes ou de seqüelas graves impingidas desnecessariamente às mulheres, notadamente às mais pobres. As que podem pagar contam com clínicas sofisticadas, ainda que clandestinas. Além de passarem pela angústia de decidir pelo aborto decisão sempre difícil , as brasileiras enfrentam riscos inexistentes para americanas, russas, cubanas, francesas, inglesas...
É inaceitável que as pessoas que não admitem o aborto por convicções morais e religiosas destruam o direito daquelas que desejam optar pelo procedimento.
Antônio Celso K. Ayub
Médico e professor universitário
e-mail: akayub@santacasa.tche.br
Janeiro de 2001, http://super.abril.com.br/superarquivo/2001/conteudo_119069.shtml
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